Angola, a Nigéria, a Malásia e a utopia realizável*

28/3/2019 8:42 AM

No ano de 2006 fui convidado, por razões que ainda hoje desconheço, a ouvir uma conferência do Professor britânico Sir Paul Collier, da Universidade de Oxford, no Ministério das Finanças à Mutamba. Estavam presentes alguns membros do Governo na época e altos funcionários do Estado. O essencial da conferência pode ser encontrado num texto que tem circulado na internet (Paul Collier, Presentation Angola) traduzido para português, e é um dos textos que todos os governantes e políticos angolanos deveriam ler – outro, já agora, poderia ser o velhinho livro do agrónomo francês René Dumont “A África começa Mal”, de 1962, creio.

Onde estará Angola nos próximos trinta anos? Como será a sociedade no ano 2036? Estas foram as perguntas introdutórias do renomado Professor. Para responder, disse ele, seria interessante analisar outras sociedades que enfrentaram um contexto idêntico ao de Angola em 2006, e para tal sugeria que o investimento mais útil que o Governo poderia fazer seria comprar, para todos os ministros, dois pacotes de passagens aéreas, um para a Nigéria e outro para a Malásia. Assim poderiam testemunhar qual era a situação desses países e compará-la com a que se encontravam ambos 30 anos antes, uma condição idêntica à de Angola em 2006.  

Em 1973, sempre segundo Paul Collier, a Nigéria vivia um período de pós-conflito – a famosa guerra do Biafra – e começava a exploração de petróleo Yom Kippur. Em 1983 “torrou” o boom do petróleo e o governo foi deposto num golpe de Estado. Em 1993 voltou a “torrar” o segundo boom do petróleo e haviam ocorrido mais dois golpes de Estado. Em 2003 a economia estava tão pobre quanto antes de ter registado a entrada de 200 biliões (ou 200 mil milhões) de dólares do petróleo. Nesse ano os nigerianos iniciaram finalmente as reformas – e não voltou a haver mais nenhum golpe de Estado até hoje, 2018, com eleições regulares e alternância de poder, acrescento eu.  

Por sua vez, em 1973, mais uma vez segundo o conferencista, a Malásia acabava de sair de devastadores conflitos interétnicos e começava a receber avultadas receitas de recursos naturais. Em 1983 já havia um progresso espectacular e prosperidade generalizada, com arranjos que permitiam aos diferentes os grupos étnicos o usufruto das receitas dos recursos. A Malásia atraía, de longe, o mais alto fluxo de investimentos per capita do mundo. Em 2003, a Malásia era uma economia de classe mundial e realizou uma transição de poder harmoniosa e estável.  

Perante tal cenário, Angola teria de fazer as suas opções. As escolhas determinariam qual das duas vias o país seguiria.

Perante o conhecimento do caminho que Angola estava a seguir, o académico prognosticou que a “opção implícita” era a de que Angola seguiria o exemplo da Nigéria, e que Lagos em 2006 era a visão da Luanda de 2036, porque, na sua óptica, existiam forças políticas e económicas que conduziriam a sociedade para esse rumo.

Collier avançou com mais alguns conselhos. O primeiro, que os angolanos deveriam aprender com os erros da Nigéria. O segundo, era que, sendo tudo importante – e acrescento eu, na linha do que aqui tenho dito, e necessário – os angolanos não deveriam cair na tentação de fazer tudo ao mesmo tempo, pois se o fizessem fracassariam em tudo. Até parece que o homem era “feiticeiro”.

Cinco pontos mais seriam aconselháveis para que Angola evitasse o abismo, de acordo com o professor: (i) o tratamento adequado das bases macroeconómicas; (ii) a definição correcta de investimentos e outras despesas públicas (infra-estruturas, despesas sociais e transferências monetárias para as famílias); (iii) afastamento da tentação de apadrinhamento político (a estratégia política de vitória para atrair o apoio acaba por ser o patrocínio privado aos apoiantes chave em vez de prestar serviços públicos adequados à maioria); (iv) gestão inteligente das divisões pós-conflito, ou tratamento judicioso da reconciliação nacional diríamos nós, através de um crescimento abrangente da economia não petrolífera com as receitas petrolíferas, o que permitiria pacificar a sociedade; da priorização de despesas sociais, medida que transmitiria a toda a população um sentimento de inclusão social e confiança e facilitaria a paz social; e a redução substancial das despesas militares, pois se elas foram um investimento na paz durante a guerra, em cenários pós-conflito elevadas despesas militares aumentam de forma significativa o risco da ocorrência de mais conflito; e, finalmente (v) a diversificação robusta da economia, o que passaria por uma desregulamentação e anulação de impostos à economia não petrolífera e pela promoção da construção e da agricultura de pequena escala.

Paul Collier não se enganou na sua previsão. Angola seguiu uma via talvez pior do que a da Nigéria e “torrou” mais de 450 mil milhões de dólares (ou biliões), fazendo exactamente o oposto do que sugerira naquela tarde de 2006, com uma ou outra excepção. Investimentos públicos sem sentido (muitos pagos e não realizados), prioridades absurdas, gastos militares e de segurança injustificados, despreocupação com a oferta de serviços sociais básicos à população, projectos habitacionais anacrónicos e que não permitiram a emergência da indústria de materiais de construção, gastos exorbitantes com projectos agro-industriais falidos, políticas educacionais que produziram mais de 200 mil estudantes universitários que, na maioria, dificilmente serão úteis à economia e à sociedade e deixaram de fora do ensino dois milhões de crianças. Tudo isso com uma justificação no mínimo inconveniente: acumulação primitiva do capital pelos angolanos. Com um governo que sempre esteve mais preocupado com a propaganda enganosa do que em providenciar condições de bem-estar para os cidadãos. Na linha do bagre que chapinha para turvar as águas a fim de se proteger e actuar à vontade. E o pior de tudo, uma herança de valores que levará gerações a extirpar.

Apesar do buraco em que caímos, ainda vamos a tempo de corrigir o rumo de modo que em 2036 possamos ter um país menos mau para se viver. Insisto, ainda que se continue a não querer ouvir, na necessidade e urgência de um pacto, que reconcilie a Nação em todos os seus aspectos, entre partidos políticos e as principais forças sociais, que permita uma paz social e um projecto nacional de desenvolvimento com ampla participação cidadã, para que não possa acontecer mais o que de mau aconteceu nas duas últimas décadas. O clima de distensão que se vive hoje era inimaginável há um ano. Pode ser uma utopia o que proponho, mas qual é o mal de se desejar a utopia quando ela pode servir para avançar?

PS – Gostaria de aproveitar este espaço público para fazer uma auto crítica. Durante a minha intervenção na Conferência Internacional sobre Autarquias Locais em Angola, na semana passada, afirmei que Julius Nyerere, o primeiro Presidente da Tanzânia, era verdadeiramente um africano porque não usava fato e gravata. A frase foi infeliz porque o que queria dizer era que, eu, como Nyerere, acho que em países africanos (ou tropicais) não faz sentido usar fato e gravata no dia-a-dia, até pelos custos financeiros (com a roupa) e energéticos (com o ar condicionado). Para além de não gostar de muito formalismos. A ideia que erradamente transmiti – na tentação em que caio muitas vezes por querer dizer muitas coisas em pouco tempo – vai contra os meus princípios de tolerância e liberdade individual. Aqui fica o registo.

* por Fernando Pacheco (artigo publicado originalmente na edição do semanário Novo Jornal, de 17 de Agosto de 2018)

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