QUE LIÇÕES DEVEMOS RETIRAR DA CATÁSTROFE DO CUNENE?

26/8/2019 12:37 PM

Em artigo anterior sobre as lições a retirar da tragédia provocada pelo ciclone Idai em Moçambique, fiz recurso ao que representava a investigação sobre o desenvolvimento liderada pelo saudoso académico moçambicano José Negrão e que havia permitido concluir, para aquela situação e entre outos aspectos, que a actuação de governos e outras instituições e organizações numa perspectiva de desenvolvimento, tem de passar por um retorno à evidência empírica que, no caso moçambicano, a investigação já havia permitido identificar algumas vias, como a concretização dos direitos fundamentais, o aumento da taxa de poupança, a reconstituição do tecido institucional e o aumento da participação do cidadão nos processos de tomada de decisões.

É esse retorno à evidência empírica que está longe de acontecer em Angola face a tragédias como as guerras que vivemos e aos insucessos das políticas gizadas ao longo do nosso tempo de independência, e especialmente no período chamado de “reconstrução nacional”.

Vive-se hoje em toda a região sul, mas com particular incidência na província do Cunene, a maior seca desde 1995 e uma das maiores de que há memória. Os principais rios, Cunene e Cuvelai, estão com muita pouca água, há fome e gado a morrer, a população em desespero procura soluções em áreas jamais procuradas, como o sul da Huíla (Mulondo) ou de Benguela (Chongorói), registam-se conflitos com agricultores “tradicionais” pelo acesso a terras e até já se conhecem casos de empresários sem escrúpulos que descobriram um novo negócio – alugar terras ociosa a pastores angustiados a mil kwanzas por cabeça de gado. Desta vez não foi possível esconder a seca como se pretendeu fazer em 2012, por ser ano de eleições.

É sabido – ou dever-se-ia saber – que a população pastoril tem um conhecimento ancestral sobre o modo como enfrentar a seca ou conviver com ela. Por isso praticam-se as transumâncias – o plural é intencional – procurando-se levar o gado para regiões onde, após as chuvas, os rios diminuem de caudal e as suas margens húmidas (evanda’s) permitem o rebentamento de pastos de boa qualidade. Dada a importância do gado na vida económica, social e cultural da população, as transumâncias são sagradas em períodos de crise, daí que não haja qualquer hesitação em tirar crianças da escola para acompanharem os pais e o gado. A transumância para a evanda de Tchimporo, no município do Cuvelai, é particularmente famosa e chegou ao meu conhecimento nos anos 70 por via de portugueses que conheciam Angola como nenhum angolano que eu conheça.

É sabido igualmente que a região tem dois rios importantes e muitos outros intermitentes e ainda que é relativamente rica em aquíferos subterrâneos, e que entre as soluções possíveis para enfrentar a seca ou conviver com ela, uma seria a realização de pequenas e pouco dispendiosas obras que poderiam levar água aos ehumbo’s dispersos – porque tal dispersão é uma estratégia inteligente de lidar com a escassez de água e de pastagens. Existem muitos estudos do tempo colonial e já na independência que sustentam esse conhecimento e os riscos inerentes.

São conhecidas, ainda, experiências de relativo sucesso de desenvolvimento comunitário visando o “empoderamento” de populações pastoris, como é ocaso do trabalho da ADRA nos Gambos, que é reconhecido, mas nunca aproveitado para expansão por outras áreas ou para a definição de políticas públicas a respeito. As comunidades que construíram cisternas-calçadão, uma experiência do Nordeste brasileiro, estão a sofrer menos e até ajudam outras.

Perante a situação crítica actual os factos que caracterizam o contexto assinalados, o que se tem feito? Desde logo, as ajudas de emergência, importantes para mitigarem a fome e salvar o gado, mas com um historial recheado de corrupção. O bispo católico de Ondjiva não escondeu o seu temor por ocasião da visita do Presidente da República, referindo-se ao passado. Não seria interessante investigar esse passado? Além disso, muitas das acções estão repletas de hipocrisia, parte de gente que na verdade nada tem a ver com a ideia de solidariedade e só aparece porque tudo é muito mediático. Por exemplo, a que propósito o MPLA organiza campanha de oferendas, quando o mais lógico seria, para além das medidas de governo, mobilizar os seus membros para participarem na campanha que a sociedade procurou implementar? Porque não pensou o Executivo em negociar com os utentes das terras ociosas a sua cedência temporária e a título excepcional aos pastores aflitos? Porque não se procura associar a protecção social às redes sociais de protecção tradicionais?

Para além das medidas de emergência, pensa-se noutras de médio e longo prazo, na generalidade com pouca ou nenhuma atenção às evidências empíricas de que fala Negrão, tanto na perspectiva científica como na dos saberes seculares. São soluções com base nos velhos paradigmas da modernização ou da dependência, que no caso concreto se traduzem em levar as populações à água que se pretende disponibilizar, sedentarizando-as sem alternativa, em vez de levar a água às populações; em implementar projectos grandiosos de difícil gestão e fácil desvio, em vez de pequenos projectos geridos pelas populações e mais amigas do ambiente. São soluções do paradigma de desenvolvimento convencional, em que se faz “para” as populações, em vez do paradigma para a cidadania, em que se procura fazer “com” as populações, como o próprio Presidente João Lourenço preconiza.

Fazer “com” as populações significa ouvir, mas ouvir mesmo, as suas preocupações e sugestões. Para que se resolva o problema do arame farpado das “farms” que impedem as transumâncias, para que se encontrem soluções para que as crianças que vão para a transumância não fiquem sem escola, para que os ehumbo’s tenham autonomia e poder para armazenar água suficiente para as famílias, para o gado e para incrementarem a produção agrícola. Para que haja um poder local verdadeiro que permita que as populações façam livremente as escolhas que achem mais adequadas.  

Fernando Pacheco, 17 de Julho de 2019

Membro do OPSA

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