Combater a seca ou aprender a viver com ela?

10/1/2020 2:51 AM

Uma dos aspectos mais valiosos da Faculdade de Agronomia – o nome oficial não era esse, mas isso é outra história, algo bizarra – onde estudei no Huambo, entre 1969 e 1974, era a preocupação dos jovens professores, na esmagadora maioria portugueses, de ajudarem os alunos a conhecerem bem o território angolano e as características dos agricultores e da população rural de Angola. Era obrigatória, por exemplo, a realização de viagens de estudo às regiões mais importantes do ponto de vista agronómico.

Foi nessa condição que tive o primeiro contacto com a região a que o agrónomo Cruz de Carvalho, fundador e primeiro director da Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola e a pessoa considerada na altura melhor conhecedora da Angola rural[1], designou de Complexo do Leite ou da Ordenha, pelo facto de essa actividade, criação de gado bovino e consequente extracção de leite, ser a mais importante para a economia, mas também para a cultura e para a vida dos habitantes da região.

O professor Carlos Portas, que foi Secretário de Estado da Reforma Agrária em Portugal depois do 25 de Abril, explicou-nos nessa viagem a importância da região, da necessidade de se saber tirar partido das condições humanas e ambientais sem agredir a cultura dos habitantes e de se saber aproveitar as potencialidades dos solos dos vales dos rios Bero e Giraúl,no Namibe, comparativamente à insignificância dos solos do Huambo – que ainda hoje representam um mito revelador da nossa ignorância generalizada.

Foi na região Sul que se deu início à primeira revolução nos transportes em Angola, um dos maiores obstáculos ao crescimento económico da então colónia portuguesa, com o aparecimento dos carros de bois trazidos pelos boers do território que hoje é a Namíbia. Não é de estranhar que toda a região seja uma das melhores estudadas do país, por investigadores desde o Padre Carlos Estermann ao veterinário Adriano Gomes – “esquecido” e desaproveitado pelo Ministério da Agricultura lá no Lubango –, passando por Júlio Morais, José Correia, Joaquim Santos, Ruy Duarte de Carvalho e o já citado Eduardo Cruz de Carvalho, para além de estudos realizados para variadíssimos planos, desde o renomado Plano do Cunene ainda no tempo colonial, até a outros no tempo em que Lopo do Nascimento foi governador,ou comissário, da província da Huíla.

Hoje sabe-se, ou dever-se-ia saber, por exemplo, que a região é semi-árida, o que significa que chove muito pouco, entre quase nada no deserto do Namibe até cerca de 500 milímetros nas zonas mais pluviosas – em termos comparativos nas regiões mais chuvosas de Angola chega-se a 2.000 mm –,com precipitações concentradas normalmente em dois ou três meses, e que isto não permite o crescimento dos capins que servem de pasto ao gado, apesar da sua boa qualidade. Sabe-se também que é isso que determina que o tipo de assentamentos humanos seja muito disperso, quase se resumindo a uma família,nos conhecidos ehumbo, pois não pode haver concentração de animais para além de um certo limite (no Norte e Leste os aldeamentos são geralmente de muito maior dimensão). Sabe-se ainda que no tempo seco os pastores levam o seu gado para as zolas de evanda, isto é, as margens dos rios que são alagadas com as chuva se onde o pasto nasce rapidamente quando o rio volta ao seu curso normal. Essas transumâncias, ou seja, a mobilidade dos animais, que nos anos sem chuva se tornam mais necessárias e mais longínquas, apresentam-se como uma das pouquíssimas soluções para quem preservar o gado é quase tudo na vida.

O que os estudiosos da região demonstraram foi que o aumento das “farms”, a partir da década de 60, com um sistema de criação de gado moderno que faz recurso ao parqueamento com uso de arame, impedindo a tal mobilidade, introduziu um poderoso factor de perturbação, afectando a quantidade de pasto disponível e obrigando a mais mobilidade. A desmatação de extensas áreas das “farms” para permitir o crescimento dos capins só veio aumentar a perturbação.

Perante estas dificuldades, tal como no antigo Plano do Cunene, o Executivo procura soluções das do tipo “soviético”, isto é, com recurso a grandes projectos de engenharia, como eu tanto tenho criticado por implicarem geralmente riscos de desvios, ou seja, corrupção, dificuldades de gestão e efeitos ambientais negativos.      

Estas opções são mais difíceis de entender pelo facto de o país estar a enfrentar uma crise enorme com a dimensão da dívida e a falta de divisas, e ainda com as fragilidades institucionais em termos de meios humanos, de falta de domínio de regras e procedimentos e dos efeitos devastadores da corrupção que tomou conta do país.

Existem hoje experiências no sul da Huíla, inspiradas no Nordeste brasileiro, que indicam que outras soluções mais baratas, mais fáceis de implementar e de gerir e mais de acordo com os processos de descentralização em curso, poderiam ser encaradas. Numa altura em que se prepara a implementação das autarquias, isso faria todo o sentido, pois seria um modo de permitir o desenvolvimento local e a criação de emprego, e, no fim,uma maior inclusão da população e consequente sustentabilidade. Tais soluções estão mais alinhadas com a ideia avançada pelo Presidente João Lourenço de trabalhar com o povo e não para o povo. Até porque as soluções que “comerão” a maior fatia dos 200 milhões de dólares atribuídos pelo Presidente apenas favorecerão uma pequeníssima parte desse povo.

O Presidente João Lourenço tem sido mal aconselhado nas suas opções no domínio da economia e da protecção social. Continua a ser muito popular, mas tem de pensar nos efeitos causados por decisões que instalam dúvidas em muitos dos seus apoiantes, como a construção de um novo centro político-administrativo quando a cidade de Luanda está cheia de edifícios por acabar que poderiam resolver os problemas mais urgentes; os mal explicados casos da compra de aviões e do concurso da quarta operadora de telecomunicações; as nomeações para cargos importantes de pessoas cujo passado recente não é de elogiar e que os põe no mesmo patamar que os “marimbondos” que se pretende combater, entre outros. O Presidente tem de ter em conta o velho ditado que diz que “a mulher de César não pode apenas ser honesta. Tem de parecer também que o é”. E pensar numa frase que ouvi há tempos de um apoiante seu: o Presidente JL tem feito coisas boas, mas tem um problema. Gasta demasiado dinheiro com coisas que podem ser importantes, podem ser necessárias,mas seguramente não são prioritárias.

PS. A proposta de revisão do OGE para 2019 apresenta um significativo corte na despesa destinada à Agricultura. Não só no montante,mas também na percentagem em relação ao valor total da despesa. A atenção à agricultura, mais uma vez, parece ser uma na teoria e outra na prática.

Fernando Pacheco, 23-5-19

Membro do OPSA

 

 

 


[1] Tenho insistido, até agora sem que alguém me ligue, na necessidade de Angola reconhecer e homenagear este e outros homens da ciência e do saber que tanto fizeram por ela, ainda que, infelizmente, nem sempre se saiba aproveitar o conhecimento por eles legado.

Fazer Download