Cooperação e Cooperação com Portugal

10/1/2020 2:51 AM

As relações entre Angola e Portugal estão em alta.Como possivelmente nunca estiveram desde a independência. Os momentos de tensão dos últimos anos parecem estar ultrapassados. Isto não significa que não possam sofrer recuos, caso as razões que ditaram esta aproximação venham a ser posta sem causa. Amor e ódio sempre estiveram presentes em tais relações, não vale a pena negar.

Como a memória é curta, tem-se colocado o foco do desconforto e das tensões recentes no chamado caso Manuel Vicente. Esquece-sequem assim pensa que em 2013 o então Presidente José Eduardo dos Santos introduziu de modo infeliz, deselegante e despropositado o tema do fim da parceria estratégica com Portugal num discurso sobre o Estado da Nação Angolana.Porque decorriam investigações em Portugal sobre governantes e outros angolanos, não houve qualquer hesitação em pôr em causa as relações entre Estados e até entre os governos na ocasião, que eram consideradas excelentes.Escrevi, na altura, que a única atitude séria das autoridades angolanas seria contratar bons advogados e aguardar serenamente pelos resultados de tal investigação, e não agir no sentido de fazer transparecer que já se sabia que os investigados eram inocentes, ou, o que era pior, que se estaria a pressionar os investigadores num certo sentido.

Escrevi também na altura, e reafirmo, que não estou de acordo com os analistas que dizem que é Portugal que precisa de Angola. No mundo de hoje, todos precisamos uns dos outros, e nós também precisamos claramente de Portugal. O Presidente João Lourenço está a ter o mérito de perceber, num ambiente nem sempre favorável, que uma relação estratégica com Portugal é vital para o curto prazo, dada a nossa necessidade premente de credibilidade para beneficiarmos das boas graças das agências financiadoras multilaterais, do investimento directo estrangeiro e da boa vontade dos países europeus para se encontrarem mecanismos para o repatriamento de capitais que satisfaçam todas as partes envolvidas.

Mas quero ir mais longe. Não sou ingénuo e sei que as relações entre Estados movem-se sobretudo por interesses. Em vez de passarmos avida a vociferar contra o facto de os portugueses estarem preocupados com a defesa dos seus interesses – o que é absolutamente legítimo – procuremos nós definir de modo claro quais os interesses perseguidos numa cooperação sadia e equilibrada com Portugal.

Não tenho preconceito nenhum em afirmar que deve ser prioritariamente com Portugal e alguns países europeus e com Cuba que devemos estabelecer uma relação que pode ser designada de estratégica ou de parceria,tendo em vista o longo prazo. As relações de cooperação estabelecidas com outros países ao longo dos mais de 43 anos de independência tiveram pouco de sustentáveis, porque não foram baseadas em princípios e valores. Sei do que falo porque trabalhei e convivi com pessoas de quase todos os países que por aqui passaram ou que ainda se encontram por cá. Se queremos construir uma sociedade democrática em que os direitos humanos sejam encarados de modo holístico, procurando-se, na medida do possível, um equilíbrio entre os direitos cívicos e políticos e os direitos económicos, sociais e culturais, em que a equidade de género e as preocupações ambientais estejam bem presentes,então temos de procurar estas referências no Estado Social Europeu, que é, na minha opinião, e apesar das imperfeições que revela, o Estado mais avançado socialmente na história da humanidade. Com outros países tais princípios e valores poderão estar sempre em causa.

Reflecti sobre estas questões por ocasião da visita do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e acredito que o Presidente João Lourenço está genuinamente interessado num alinhamento estratégico com a Europa, sendo Portugal o país escolhido para servir de canal a tal alinhamento. Pode ser essa a grande opção ideológica de João Lourenço, mas para tal tem de encontrar soluções para os grandes défices de protecção social de que a sociedade angolana ainda padece. É evidente que tal escolha implicará muitas armadilhas,dados os interesses inconfessos de gente dos dois lados que não estará interessada numa caminhada séria. Interesses que têm a ver com negociatas, com preconceitos antigos e recentes e com jogos políticos e de poder. Ainda continuaremos por muito tempo a ver angolanos a perceberem os portugueses como“colonos” e portugueses a olhar os angolanos como seres pouco dotados e confiáveis.

Sendo as questões económicas e sociais as que mais devem merecer a atenção urgente dos dois países – a educação e em particular a formação de professores de língua portuguesas devem fazer parte das preocupações estratégicas –, acho que se tem descuidado a cooperação a nível da sociedade civil em todas as suas manifestações. Não ver académicos, escritores,músicos ou outros intelectuais a integrar as delegações que foram a Portugal e vieram a Angola foi muito negativo. Os estadistas e os governantes passam, mas as sociedades permanecem, e só as relações entre cidadãos que possam construir capital social podem resistir ao tempo.

Têm sido as relações entre cidadãos que têm permitido situar a cooperação entre Angola e Portugal e entre Angola e Cuba a níveis diferentes das que acontecem com outros países. Hoje é difícil não encontrar entre as elites angolanas pessoas que não estudaram em Portugal ou Cuba. As relações com Portugal e Cuba são diferentes porque se radicam em reciprocidades de vário tipo, desde a língua à história comum. Os angolanos não esquecem, por exemplo, que os primeiros médicos que pisaram muitas localidades foram cubanos,como não podem deixar de ter em conta muitas das suas escolhas futebolísticas ou gastronómicas.

É óbvio que estas opções não devem pôr em causa a cooperação com outros países e povos. O importante será que sejamos capazes de definir uma agenda de cooperação com base nos nossos interesses e nos valores da sociedade que queremos construir.

PS – Na entrevista do Presidente João Lourenço à RTP transmitida no passado dia 4 foi dito que não havia fome em Angola. Esta e outras imprecisões são resultado do modo como a equipa do Presidente faz o trabalho de casa. A nossa comunicação social tem vindo a reportar sobre a penúria alimentar no Sul, devido ao modo errado como se tem tratado o problema da estiagem. É verdade que não se trata de fome generalizada, como por vezes se pretende fazer crer, mas o assunto merecia melhor tratamento.

Fernando Pacheco, 14-3-19

Membro do OPSA

 

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