“A ADRA começou a afirmar-se na sociedade como um projecto de cidadania”*

5/10/2020 3:41 PM

A Acção para o desenvolvimento rural e Ambiente(ADRA), uma organização-não governamental angolana, completa 30 anos desde a sua fundação.

Este ano a ADRA completa 30 anos de existência, quais foram os principais contributos que a Organização deu ao país até ao momento?

A ADRA surgiu em 1990 e, a partir da implementação dos primeiros projectos de terreno, começou a afirmar-se na sociedade como um projecto de cidadania; um mecanismo apartidário, independente e sem fins lucrativos com o objectivo de reforçar as capacidades das comunidades rurais e dos indivíduos para que eles próprios sejam capazes de responderem às suas necessidades sentidas e, consequentemente, serem autores do seu próprio desenvolvimento. Ao celebrarmos os 30 anos de funcionamento ininterrupto da Organização, é com satisfação que notámos membros de comunidades como partícipes do desenvolvimento sustentável. Os membros das comunidades rurais, maioritariamente constituídos em associações e cooperativas agropecuárias, integram os Conselhos de Auscultação das Comunidades, pensam e dinamizam iniciativas económicas locais, estabelecem acordos de parcerias com instituições públicas e privadas, trocam experiências e apoiam associações e cooperativas agropecuárias de outras localidades do país, enfim, entendem que o caminho para o bem estar económico e social depende da sua visão e do seu engajamento nos mais variados processos de desenvolvimento, tentando que o Executivo seja apenas um facilitador desse processo mediante a garantia dos direitos e deveres consagrados na actual Constituição da República.

A Organização trabalha directamente com as comunidades. Nesta fase pandémica, qual tem sido o impacto da Covid-19 nessas localidades?

Obviamente, o impacto é negativo. Vou referir-me em alguns sectores-chave. A nível da educação, as aulas estão paralisadas e muitas crianças não têm acesso às teleaulas, devido à falta de aparelhos ou de energia eléctrica, sobretudo nas comunidades rurais. A nível da saúde, muitas famílias referem que a covid-19 levou o Executivo a esquecer que existem outras doenças de tal modo que os pouquíssimos centros médicos públicos só passam receitas e nunca têm medicamentos, incluindo os medicamentos essenciais. A nível da protecção social, as famílias questionam critérios que estão na base da selecção de aldeias ou bairros para a implementação de políticas de assistência social. A nível económico, os agricultores familiares têm-se queixado de dificuldades de escoar os produtos, não só devido ao velho problema de más estradas, mas também de controlos excessivos que se verificam nas estradas interprovinciais e a subida da tarifa de táxi de Kz.3.000,00 para Kz 6.000,00, para ida e volta, por exemplo, no troço Ganda – Benguela. Com a subida do táxi, também se verifica subida de outros preços, principalmente de produtos industriais, incluindo fertilizantes. Em contrapartida, constata-se uma maior procura de produtos agrícolas nacionais.

O contacto directo que mantemos com os agricultores familiares permite-nos saber que, desde o surgimento da covid-19, aumentou a procura dos produtos agrícolas nacionais de tal modo que, muitas vezes, os agricultores não precisam de os comercializar nos mercados, porque as comerciantes (vulgo caúladoras) compram-nos nas áreas de produção e a um preço mais reduzido, contando com despesas de transporte.

E que medidas a ADRA tem tomado parte para amortecer esse impacto?

Temos trabalhado em dois eixos. O primeiro designamos por intervenção directa às comunidades, no qual apoiamos às famílias na mitigação do impacto económico e social da covid-19, através da implementação de projectos que contam com o financiamento de agências de cooperação para o desenvolvimento, sem tostão do Governo. Através destes projectos estamos apoiar as famílias no acesso aos insumos agrícolas e ao conhecimento para que possam aumentar os níveis de produção agrícola, a facilitar a ligação aos principais mercados no sentido de compensar melhor o investimento e a disseminar informações sobre as medidas de prevenção, bem como a disponibilizar alguns produtos de limpeza para a higiene individual e colectiva. O segundo eixo denominamos por influência de políticas públicas, no âmbito do qual procuramos reforçar as capacidades dos membros das comunidades para que possam defender as suas necessidades e prioridades junto das Administrações Municipais visando constarem nos planos de desenvolvimento dos municípios.

Por outro lado, procuramos, a nível central, partilhar como Executivo a nossa visão sobre os caminhos de desenvolvimento do País e a efectivação de políticas públicas, sempre pensando na necessidade do bem-estar económico esocial da família angolana, particularmente das camadas mais vulneráveis da sociedade.

Quais são os Projectos que a ADRA trabalha actualmente e onde são implementados?

O foco da ADRA é o de contribuir para a promoção do desenvolvimento das comunidades, por isso, implementa projectos de forma integrada. Ou seja, trabalha no reforço de capacidade interventiva das famílias organizadas em associações e cooperativas, no apoio ao acesso aos meios de produção e aos serviços públicos, bem como na dinamização de iniciativas tendentes à solução de problemas económicos e sociais que afectam as famílias, desde o apoio à legalização de terras e das associações ou cooperativas até à comercialização de produtos agrícolas, perpassando pelo incentivo ao aumento da produção, aprimoramento de conhecimentos através da frequência às aulas de alfabetização e aos seminários de capacitação, realização de pequenos negócios nas aldeias e na identificação conjunta de soluções locais.

Actualmente, a ADRA está a implementar 22 projectos em 25 municípios nas provinciais de Benguela, Cunene, Huambo, Huíla, Malanje, Namibe e Luanda. Estes projectos apoiam directamente 20.660 pessoas, sendo 10.040 homens e 10.620 mulheres, num total de 139.183 pessoas indirectas.

A ADRA, apesar de trabalhar principalmente com os camponeses, possui também actividades ligadas à juventude e mulheres rurais. Que análise faz dos programas públicos ligados a estas franjas da sociedade?

No contexto de Angola, onde a maior parte dos municípios apresenta características rurais, é normal a sociedade ter o entendimento de que o trabalho da ADRA se resuma no apoio aos camponeses e aos agricultores familiares, mas o trabalho da Organização é mais amplo. Além de projectos de apoio à agricultura familiar, a Organização intervém em projectos de apoio à educação formal com incidência no ensino primário e na alfabetização de adultos, em projectos de educação para a saúde com incidência na educação nutricional e na prevenção de doenças, em projectos de apoio aos jovens com incidência no empreendedorismo, em projectos de educação cívica com incidência no empoderamento das mulheres, em projectos de monitoria de programas públicos, apenas para citar alguns.

Particularmente aos programas públicos para a juventude e para as mulheres no meio rural, não há muito que se diga, porque não me parece haver políticas públicas específicas de apoio à juventude e à mulher no meio rural. Uma das preocupações centrais da juventude e das mulheres no meio rural é o desemprego.

O Plano de Acção para a Promoção de Empregabilidade (PAPE), que se centra na capacitação de jovens nos Centros de Formação Profissional e Técnica (CFT)e na distribuição de kits de trabalho, foi pensado para o meio urbano, porque os CFT só existem nas capitais de províncias e nas sedes de alguns poucos municípios. Pensar políticas públicas de apoio à juventude e à mulher no meio rural é pensar que a juventude e as mulheres, no meio rural, sabem fazer melhor e como elas podem explorar as potencialidades que estão a sua volta, nomeadamente a terra, a água e o clima. Significa pensar em cursos técnicos básicos de curta duração, mas com possibilidadesde actualizar permanentemente os seus conhecimentos, assim como no acesso aos meios de produção. Isso sim, seria, em meu entender, pensar em como promover a empregabilidade no seio da juventude e das mulheres do meio rural.

Qual comentário faz sobre a situação da Educação?

Entendo que se refere à educação formal. Ela está parada há seis meses, desde o surgimento da pandemia da Covid-19, em Março último, como uma das medidas de prevenção, o que considero positivo. Mas a paralisação prolongada é prova evidente de que a situação da educação pública no País foi durante muitos anos um dos parentes pobres, uma vez que a nível do Orçamento Geral do Estado (OGE) o seu peso não passou de 8% pelo menos desde o alcance da paz a 4 de Abril de 2002. Se a Educação fosse um dos parentes mais significativos do OGE, provavelmente, em tempo da Covid-19, as escolas estariam abertas, admitindo paralisação não alongada. Pois, elas estão fechadas por não oferecem condições de segurança. Muitas escolas não têm água corrente, pessoal de limpeza e apresentam falta de materiais e produtos de higienização. Mas não são apenas estes problemas que afectam a educação, uma vez que há necessidades de superar o défice de infraestruturas escolares, de recursos humanos, de equipamentos, da melhoria e adaptação dos currículos à realidade dos municípios, enfim, de todos os factores que concorrem para o acesso e para a qualidade de ensino e aprendizagem.

Qual é a sua visão em relação ao estado actual da agricultura no País?

Tem-se dito que as crises despertam a sociedade e os governos. Com a baixa do preço do petróleo no mercado internacional, principal produto de exportação do País, reduziram as divisas e, com isso, a capacidade de importação di bens. Isso acelerou a ideia de o Executivo Angolano trabalhar na efectivação da diversificação da economia nacional, investindo em sectores primários com destaque para a agricultura. Hoje, portanto, devido às limitações impostas pela Covid-19, o Executivo tem tomado medidas de políticas, que, se forem efectivamente (bem) implementadas, poderão provocar importantes transformações económicas e sociais. Refiro-me às medidas relacionadas com a redução do IVA para 5% para a aquisição de insumos agrícolas, a possibilidade de constituir cestas básicas com produtotsagrícolas nacionais, restrições na disponibilização de divisas para a importação de certos produtos agrícolas com capacidade de produção nacional, enfim, há um conjunto de medidas que valorizam a produção nacional. Isso é positivo, porque, por um lado, estimula os camponeses e os agricultores a aumentarem os níveis de produção uma vez que haverá (já começa a haver) maior procura e, por outro, permite o Executivo racionalizar divisas para atender outras necessidades que, dado o nosso estágio de desenvolvimento, ainda não somos capazes de produzir localmente.

Mas falar da agricultura não é apenas pensar em produtos agrícolas; é preciso pensar em toda a cadeia de produção e de valor, ou seja, na assistência técnica aos camponeses e aos agricultores, o que é somente possível com diaspionibilização de recursos humanos com capacidade para o efeito, na investigação científica para responder em tempo oportuno a eventuais pragas, na reabilitação ou construção de estradas e pontes, no sistema de mercado e na indústria transformadora. Enfim, tem de haver uma intervenção articulada de diferentes sectores da nossa sociedade.

Nos últimos tempos, a questão da diversificação da economia e o investimento agrícola têm estado em alta nas discussões do Executivo. Acha que as comunidades rurais e os pequenos agricultores já têm sentido mudanças significativas?

A necessidade da diversificação da economia através de exploração de recursos não petrolíferos com destaque para a agricultura, sempre constou do discurso e das políticas de orientação do Executivo. Após o alcance da paz, a 4 de Abril de 2002, o Executivo elaborou uma estratégia de combate à pobreza que tinha dez eixos de intervenção estratégica, dos quais a agricultura. As outras políticas públicas que se seguiram a essa estratégia, como o Plano Nacional de Desenvolvimento 2013-2017, também contemplaram o sector agrário como sendo fundamental para a promoção e crescimento da economia nacional.

Como é do conhecimento da sociedade, o problema está na (não) efectivação de tais políticas, por razões que vão desde a falha técnica tanto na elaboração como noutras fases seguintes até a falhas de gestão. Uma das falhas técnicas é a pouca preocupação na realização de avaliações de políticas, o que permitiria evitar erros no futuro e, a nível da gestão é a pouca atenção na prestação de contas à sociedade. Enfim, penso que é chegada a hora destes altos discursos saírem da retórica para a acção efectiva de tal modo que possam produzir transformações sociais nas comunidades rurais e urbanas.

Qual o comentário que faz sobre o impacto destes programas públicos ligados a agricultura, como o PRODESI, Minha Terra na vida das comunidades das zonas rurais?

Todos os programas públicos que visam a promoção da segurança alimentar e nutricional, e do desenvolvimento das comunidades são de importância inquestionável. Fazem parte disso o PRODESI e o Programa Minha Terra. O primeiro tem como principal instrumento de concretização o Programa de Apoio ao Crédito (PAC) e encontra-se em curso há mais de um ano, mas muitos agricultores, sobretudo os pequenos, queixam-se de dificuldades de acesso ao crédito, porque os requisitos exigíveis estão muito aquém das suas capacidades, como, por exemplo, os títulos de terras.

*Entrevista feita ao Director Geral da ADRA, Carlos Cambuta ao Jornal O País, edição 15 de Setembro, páginas 25 e 26.

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