CONVERSA DA MULEMBA - PODE ANGOLA MELHORAR?

25/2/2022 12:57 PM
“Uíge - moradores abandonam aldeias em busca de melhores condições” era o título de destaque da página 6 do Jornal de Angola de 24 de Janeiro último. A busca de melhores condições de vida na cidade do Uíge e em Luanda está na base do êxodo ‘catastrófico’, principalmente de jovens, da aldeia de Ngundu, no município sede, desde 2008, ainda segundo o mesmo jornal. Das mais de 100 residências já só restam seis rodeadas de capim. Noutra aldeia, Mbanza II, de mais de 300 residentes por altura do fim da guerra só ficaram 27, e assim por diante. Se a poucos quilómetros da cidade, onde vivem as ‘pessoas de verdade’, é assim, imagine-se o que estará a acontecer nos municípios longínquos. Na verdade, esse panorama é comum a quase toda a extensão das áreas rurais de Angola.

Uma consulta aos dados do Censo de 2014 mostra que apenas nos municípios fronteiriços as respectivas comunas estão em equilíbrio demográfico com as das comunas sede, e tal acontece porque as populações encontram nos países vizinhos os serviços que não encontram em Angola. Esta realidade é sistematicamente ignorada pelas instituições políticas e económicas da província e do País, incluindo aquelas que deveriam ocupar-se da atenção às mulheres, que acabam sendo as mais prejudicadas pelos efeitos de tal processo de exclusão.

Nas cidades, porém, esses migrantes não encontram as oportunidades ansiadas. Os progressos tímidos da indústria estão muito longe de compensar a desindustrialização a que se assistiu, resultante em grande medida da guerra, é certo, mas que o insucesso da diversificação da economia não conseguiu pôr termo. Como resultado temos o elevadíssimo índice de desemprego que penaliza a juventude. O salário mínimo nacional foi ajustado em 2017, ano de eleições, e o seu valor foi-se deteriorando desde Janeiro de 2018, quando o Kwanza entrou numa espiral de desvalorização, ou de depreciação, até finais de 2020. Nesse período a perda de poder de compra dos trabalhadores atingiu níveis incomportáveis e só o recurso ao mercado informal e a outras acções mais ou menos ilegais permite a sua penosa sobrevivência.

O Programa de Reconversão da Economia Informal (PREI) não porá cobro a esta situação porque, para além do mais, a burocracia e os impostos se encarregarão disso. Este é o resultado das políticas de direita que afectam os cidadãos de um país que um dia quis ser uma república de trabalhadores. Como os esquecidos camponeses, estes não fazem parte das “pessoas de verdade” porque são vítimas dos mesmos processos de exclusão, inimagináveis num país que esbanjou recursos e diz ter abraçado há décadas a social-democracia.

No sul, e com maior incidência na província do Cunene, as obras que supostamente vão acabar os malefícios da seca, prosseguem para gáudio de muita gente. Tais obras foram construídas sem que fossem ouvidas as populações da região, aquelas que mais atingidas têm sido pelos efeitos da seca e que vêm demonstrando enorme capacidade de resiliência ao longo dos tempos. Essa capacidade de resiliência, ignorada por quem tomou as decisões, tudo indica, será muito afectada pelo tipo de abordagem seguido, que desconhece que o problema daquelas populações não reside apenas na água, mas sim na gestão do equilíbrio do complexo ecossistema constituído por terra, água, o rio e suas enchentes periódicas, o gado e o pasto para esse gado.

A solução encontrada vai promover o agronegócio, é certo, mas à custa dos meios de vida das populações, e a mais largo prazo da própria sobrevivência de povos e culturas. Tal como aconteceu com outros projectos anunciados com pompa e que custaram avultados recursos ao erário – caso da Aldeia Nova, por exemplo –, foram ignorados estudos e críticas dados à estampa por técnicos e cientistas que se dedicam há anos aos problemas da região, com base em trabalhos de outros estudiosos, angolanos e estrangeiros, que apontaram para soluções que estão nos antípodas das que estão a ser implementadas, e que, tudo o indica, votarão aquelas populações, que vêm resistindo às investidas das irregularidades climáticas a níveis mais acentuados de exclusão.

Estes processos de exclusão não são fruto do acaso. Num aspecto vale a pena ter em conta a abordagem de Daron Acemoglu e James A. Robinson no seu laureado livro “Porque falham as Nações”. As elites dominantes do País, que exercem o poder há longo tempo, recriaram instituições políticas e económicas do passado que geram instituições extractivistas, isto é, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade, para benefício de outros. São essas instituições que reproduzem a desigualdade e a pobreza e a exclusão crescentes em Angola. São instituições deste tipo que explicam o crescimento das ideologias populistas e radicais da extrema-direita no mundo democrático e são bem vistas por muitos dos youpies que estão a dominar o Estado angolano.  

Angola tem falhado sucessivas oportunidades para construir um projecto nacional inclusivo e abrangente que possa conformar o ideal de Nação onde os angolanos se revejam.

Falhámos a primeira, a grande oportunidade da independência, e tivemos a terrível primeira guerra civil e as guerras de agressão; falhámos a segunda proporcionada pela paz alcançada em Bicesse e sofremos nova e ainda mais destruidora guerra civil; e falhámos a terceira, com o alcance da paz, por não termos sido capazes de construir um país reconciliado e bom para se viver, por ausência de perspectiva de um projecto de desenvolvimento democraticamente sustentável, isto é, que conjugue crescimento económico com justiça social e igualdade de oportunidades. Em vez disso, a reconstrução originou mais instituições políticas e económicas extractivas em desfavor de inclusivas, isto é, das que permitem e incentivem o pluralismo e a participação de segmentos mais e mais alargados. A reconstrução deixou de fora os trabalhadores, os camponeses, as mulheres agricultoras, os jovens, os opositores, os cidadãos sem cartão do “partido” e muitos mais.

Pode Angola melhorar? Claro que pode. Uma nova oportunidade poderia emergir da crise que vivemos há anos, caracterizada essencialmente pela inépcia das instituições extractivistas dominantes. O MPLA já demonstrou que sozinho é incapaz de resolver a crise e dar um bom rumo ao País, pelo carácter extractivista das instituições que induz. O fracasso da reforma do Estado iniciada há dois anos é mais do que evidente, e não se vislumbram efeitos do Simplifica. Caso os actores políticos pusessem o interesse da Nação acima dos seus, poderíamos aproveitar o momento para darmos os primeiros passos para a construção de um país diferente, mais justo e com menos desigualdades, sabendo que os resultados só seriam alcançados a prazo. Um país com base num programa simples, que começaria pela concretização dos direitos e garantias plasmados na Constituição da República. Um país que garanta direitos cívicos e políticos para todos os cidadãos, com partido ou sem partido.

Um país que aposte na promoção de instituições inclusivas (principalmente nas áreas da educação e da saúde) e consequente despartidarização e pluralismo. Um país que não esteja preocupado em ser o melhor entre os seus pares, mas que faça um esforço para garantir, igualmente para todos, os direitos económicos, sociais e culturais. Enfim, um país que procure ser verdadeiramente moderno, ou seja, capaz de encontrar caminhos para enfrentar os novos problemas da humanidade, como, por exemplo, o desafio das mudanças climáticas e seus efeitos.

Os dois maiores partidos angolanos introduziram a palavra inclusão nos seus slogans. Mais democracia e inclusão de um lado, um governo inclusivo e participativo do outro. Não será um ponto de partida? Ou os slogans, afinal, são apenas para olhar?

Texto de Fernando Pacheco, publicado no Novo Jornal, aos 19 de Fevereiro de 2022
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