Apesar do mérito e do método mais acertado do que o do encontro com a sociedade civil do passado mês de Maio, o acto trouxe à superfície as fragilidades da nossa sociedade em matéria de diálogo, algo recorrente ao longo dos anos e revelador de falta de prática. Desde logo em matéria de organização, que deixa sempre muito a desejar, em termos de logística e da representatividade e legitimidade de algumas das presenças. Foi notório o desequilíbrio de género e a ausência de segmentos importantes do ponto de vista cívico, social e profissional, como as zungueiras, apenas como exemplo. O conteúdo das intervenções, salvo algumas excepções, foi pobre, demasiado centradas em problemas específicos e deixando à margem temas fundamentais, na esteira das políticas públicas que, embora dizendo respeito à sociedade no seu todo, penalizam seriamente os jovens. Foi triste não se ouvir falar da pobreza, das variadíssimas formas de violência, da gravidez precoce e abandono escolar correlacionado, da prostituição juvenil, dos bilhetes de identidade, da desigualdade de oportunidades, da falta de isenção da comunicação social pública e de transparência na governação.
Não foi muito agradável perceber que o Conselho Nacional da Juventude está longe de representar os jovens na sua enorme diversidade. Igualmente não foi muito agradável constatar uma certa falta de humildade da parte de quem tem a responsabilidade mais alta na hierarquia do Estado no modo como foram respondidas algumas das questões mais “incómodas”. E no ar ficou a pergunta que não se quer calar: porque os ministros, os governadores e os administradores municipais e comunais não dialogam com a sociedade e particularmente com os jovens? Não seria uma forma de amortecer o descontentamento?
Posteriormente, também não foi nada agradável ouvir dos dirigentes do partido no poder referências a temas que têm de estar definitivamente afastados do seu discurso, como a existência de inimigos da paz ou de adversários que procuram subverter a ordem constitucional instituída. Como se os cidadãos pudessem ignorar as políticas e práticas que têm sido responsáveis pelo facto da pobreza e do desemprego estarem a aumentar, da diversificação da economia não acontecer, do custo de vida estar a subir, das instituições não melhorarem e muitas delas, pelo contrário, estarem a degradar-se, da burocracia estar crescer, da recessão não ser vencida, do crescimento do PIB não acontecer. O problema é da pandemia? Esta apenas agravou males que vêm desde 2014, já assumidos oficialmente, mas que, na realidade, vêm desde 202-2004, como o “banquete” está a comprovar, banquete onde não marcaram presença os inimigos da paz. Com tudo isso, a confiança esbate-se e a insatisfação instala-se, sendo desnecessária qualquer intervenção malévola, externa ou interna. Está nos livros e na experiência dos povos.
O MPLA não pode continuar a analisar este problema de modo superficial. O seu desejo de manter o poder hegemónico na sociedade choca com a sua incapacidade de vencer a crise que se arrasta há quase duas décadas. Incapacidade para ultrapassar as forças de bloqueio da transformação económica e social e do processo de democratização, incluindo a despartidarização do Estado, a institucionalização das autarquias e a revisão da Constituição (questão que devia preocupar o Chefe de Estado por uma série de razões, até no seu próprio interesse). Incapacidade para aceitar órgãos reguladores e comissões eleitorais independentes e tribunais que transmitam confiança aos cidadãos. Incapacidade para acabar com a indisciplina generalizada. Incapacidade para assumir uma comunicação social livre de amarras partidárias. Incapacidade para a criação de um verdadeiro clima de reconciliação.
Sim, porque é difícil imaginar que importantes segmentos da vida nacional, representando milhões de cidadãos e não apenas os que participaram na guerra civil se sintam bem quando não se revêm na história de Angola, que continua demasiado conotada com a história do MPLA; que não vêem nomes que lhes sejam familiares na toponímia geral do País; que vejam a sua ascensão profissional e social dificultada por não militarem no partido no poder.
De facto, o MPLA pode não estar cansado, mas a sua agenda política não reflecte a realidade actual do País. Vai crescendo a ideia generalizada de que o partido no poder esgotou a sua capacidade para resolver por si só tantos e tão complexos problemas, que se agravam à medida que os anos vão passando. A sua manutenção no poder explica-se pela hegemonia que impede a alternância de poderes e pelo temor que grande parte do eleitorado tem de uma mudança política, por não acreditar nas alternativas que se vislumbram e por suspeitar que elas possam pôr em causa algumas das conquistas alcançadas. Isto é, não parece que uma solução para Angola restringida ao MPLA e ao seu poder hegemónico seja viável, mas também não parece viável uma solução que exclua o MPLA por tudo aquilo que representa. Perante isto, que fazer? Como se pode dar à manivela para o País poder arrancar?
O Presidente João Lourenço tem vindo a lançar algumas ideias que permitem concluir que percebeu o problema, pelo menos em parte. Mas as soluções que preconiza vão na linha da manutenção do poder hegemónico do MPLA. Ou seja, preconiza uma cura controlada pelo seu partido. Ora, essa é a questão de fundo. A solução tem de ser encontrada num quadro institucional diversificado e pluralista, onde o consenso, tal como concebido por Augusto Comte, pode constituir o cimento indispensável para a construção de novas estruturas sociais e de projectos nacionais abrangentes, sem que se tenha de subalternizar o contraditório e o conflito que alimentam os processos democráticos.
É aqui que reside a essência de um possível pacto nacional, com esta ou outra designação, que vários fazedores de opinião têm vindo a propor, como Adriano Mixinje, Ismael Mateus e Gustavo Costa, entre outros, aos quais se juntou recentemente Onofre dos Santos, e, de certo modo, o nosso compatriota António Costa Silva, que tem brilhado em Portugal e no mundo na qualidade de estratega, quando afirma que “João Lourenço precisa de ´rasgos´ para evitar grande instabilidade”.
João Lourenço, caso queira, tem condições para ficar na história se seguir o exemplo dos seus antecessores e transformar a presente crise numa oportunidade. O Presidente Agostinho Neto, num acto arrojado e sem o apoio do seu Bureau Político na altura, foi a Kinshasa em 1978 e negociou com Mobutu, seu inimigo de estimação, o fim do apoio militar e político à FNLA. No início de 1979 iniciou conversações com a África do Sul do apartheid com o fim último de acabar com a guerra. Foram suas estas palavras: “todos os dias morrem angolanos nesta guerra, sejam da UNITA ou do MPLA, e isso não pode continuar”. A sua morte impediu que o objectivo fosse alcançado. Mais de 10 anos mais tarde José Eduardo dos Santos, depois de concluir que a insistência na guerra não fazia mais sentido e só penalizava os angolanos, chegou a acordo com Jonas Savimbi para o seu fim, o que levou ao multipartidarismo, nascendo assim estabelecida o que alguns políticos designam por Doutrina Angolana de Resolução de Conflitos.
A voz sempre inspiradora do Papa Francisco voltou a ser ouvida recentemente, ao afirmar que não há democracia com fome nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade. É isso que pode trazer paz e estabilidade política e social. Algo que não é impossível se os políticos e a sociedade civil assumirem que os cidadãos têm direitos cívicos e políticos, mas também económicos e sociais e que esse conjunto de direitos deve estar sempre equilibrado.
Fernando Pacheco, 18-12-20