CONVERSA NA MULEMBA - É PRECISO DAR O PAÍS À MANIVELA

3/1/2021 9:14 PM

O encontro do Presidente da República com um grupo de jovens, seleccionados na sua maioria, segundo se percebeu, pelo Conselho Nacional da Juventude, foi uma conquista do movimento de manifestações dos últimos meses e teve os seus méritos. Caso tivesse acontecido antes, ter-se-ia evitado uma morte e toda a celeuma gerada, com avultados danos para a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e para a imagem externa do País.

Apesar do mérito e do método mais acertado do que o do encontro com a sociedade civil do passado mês de Maio, o acto trouxe à superfície as fragilidades da nossa sociedade em matéria de diálogo, algo recorrente ao longo dos anos e revelador de falta de prática. Desde logo em matéria de organização, que deixa sempre muito a desejar, em termos de logística e da representatividade e legitimidade de algumas das presenças. Foi notório o desequilíbrio de género e a ausência de segmentos importantes do ponto de vista cívico, social e profissional, como as zungueiras, apenas como exemplo. O conteúdo das intervenções, salvo algumas excepções, foi pobre, demasiado centradas em problemas específicos e deixando à margem temas fundamentais, na esteira das políticas públicas que, embora dizendo respeito à sociedade no seu todo, penalizam seriamente os jovens. Foi triste não se ouvir falar da pobreza, das variadíssimas formas de violência, da gravidez precoce e abandono escolar correlacionado, da prostituição juvenil, dos bilhetes de identidade, da desigualdade de oportunidades, da falta de isenção da comunicação social pública e de transparência na governação.

Não foi muito agradável perceber que o Conselho Nacional da Juventude está longe de representar os jovens na sua enorme diversidade. Igualmente não foi muito agradável constatar uma certa falta de humildade da parte de quem tem a responsabilidade mais alta na hierarquia do Estado no modo como foram respondidas algumas das questões mais “incómodas”. E no ar ficou a pergunta que não se quer calar: porque os ministros, os governadores e os administradores municipais e comunais não dialogam com a sociedade e particularmente com os jovens? Não seria uma forma de amortecer o descontentamento?

Posteriormente, também não foi nada agradável ouvir dos dirigentes do partido no poder referências a temas que têm de estar definitivamente afastados do seu discurso, como a existência de inimigos da paz ou de adversários que procuram subverter a ordem constitucional instituída. Como se os cidadãos pudessem ignorar as políticas e práticas que têm sido responsáveis pelo facto da pobreza e do desemprego estarem a aumentar, da diversificação da economia não acontecer, do custo de vida estar a subir, das instituições não melhorarem e muitas delas, pelo contrário, estarem a degradar-se, da burocracia estar crescer, da recessão não ser vencida, do crescimento do PIB não acontecer. O problema é da pandemia? Esta apenas agravou males que vêm desde 2014, já assumidos oficialmente, mas que, na realidade, vêm desde 202-2004, como o “banquete” está a comprovar, banquete onde não marcaram presença os inimigos da paz. Com tudo isso, a confiança esbate-se e a insatisfação instala-se, sendo desnecessária qualquer intervenção malévola, externa ou interna. Está nos livros e na experiência dos povos.

O MPLA não pode continuar a analisar este problema de modo superficial. O seu desejo de manter o poder hegemónico na sociedade choca com a sua incapacidade de vencer a crise que se arrasta há quase duas décadas. Incapacidade para ultrapassar as forças de bloqueio da transformação económica e social e do processo de democratização, incluindo a despartidarização do Estado, a institucionalização das autarquias e a revisão da Constituição (questão que devia preocupar o Chefe de Estado por uma série de razões, até no seu próprio interesse). Incapacidade para aceitar órgãos reguladores e comissões eleitorais independentes e tribunais que transmitam confiança aos cidadãos. Incapacidade para acabar com a indisciplina generalizada. Incapacidade para assumir uma comunicação social livre de amarras partidárias. Incapacidade para a criação de um verdadeiro clima de reconciliação.

Sim, porque é difícil imaginar que importantes segmentos da vida nacional, representando milhões de cidadãos e não apenas os que participaram na guerra civil se sintam bem quando não se revêm na história de Angola, que continua demasiado conotada com a história do MPLA; que não vêem nomes que lhes sejam familiares na toponímia geral do País; que vejam a sua ascensão profissional e social dificultada por não militarem no partido no poder.

De facto, o MPLA pode não estar cansado, mas a sua agenda política não reflecte a realidade actual do País. Vai crescendo a ideia generalizada de que o partido no poder esgotou a sua capacidade para resolver por si só tantos e tão complexos problemas, que se agravam à medida que os anos vão passando. A sua manutenção no poder explica-se pela hegemonia que impede a alternância de poderes e pelo temor que grande parte do eleitorado tem de uma mudança política, por não acreditar nas alternativas que se vislumbram e por suspeitar que elas possam pôr em causa algumas das conquistas alcançadas. Isto é, não parece que uma solução para Angola restringida ao MPLA e ao seu poder hegemónico seja viável, mas também não parece viável uma solução que exclua o MPLA por tudo aquilo que representa. Perante isto, que fazer? Como se pode dar à manivela para o País poder arrancar?

O Presidente João Lourenço tem vindo a lançar algumas ideias que permitem concluir que percebeu o problema, pelo menos em parte. Mas as soluções que preconiza vão na linha da manutenção do poder hegemónico do MPLA. Ou seja, preconiza uma cura controlada pelo seu partido. Ora, essa é a questão de fundo. A solução tem de ser encontrada num quadro institucional diversificado e pluralista, onde o consenso, tal como concebido por Augusto Comte, pode constituir o cimento indispensável para a construção de novas estruturas sociais e de projectos nacionais abrangentes, sem que se tenha de subalternizar o contraditório e o conflito que alimentam os processos democráticos.

É aqui que reside a essência de um possível pacto nacional, com esta ou outra designação, que vários fazedores de opinião têm vindo a propor, como Adriano Mixinje, Ismael Mateus e Gustavo Costa, entre outros, aos quais se juntou recentemente Onofre dos Santos, e, de certo modo, o nosso compatriota António Costa Silva, que tem brilhado em Portugal e no mundo na qualidade de estratega, quando afirma que “João Lourenço precisa de ´rasgos´ para evitar grande instabilidade”.

João Lourenço, caso queira, tem condições para ficar na história se seguir o exemplo dos seus antecessores e transformar a presente crise numa oportunidade. O Presidente Agostinho Neto, num acto arrojado e sem o apoio do seu Bureau Político na altura, foi a Kinshasa em 1978 e negociou com Mobutu, seu inimigo de estimação, o fim do apoio militar e político à FNLA. No início de 1979 iniciou conversações com a África do Sul do apartheid com o fim último de acabar com a guerra. Foram suas estas palavras: “todos os dias morrem angolanos nesta guerra, sejam da UNITA ou do MPLA, e isso não pode continuar”. A sua morte impediu que o objectivo fosse alcançado. Mais de 10 anos mais tarde José Eduardo dos Santos, depois de concluir que a insistência na guerra não fazia mais sentido e só penalizava os angolanos, chegou a acordo com Jonas Savimbi para o seu fim, o que levou ao multipartidarismo, nascendo assim estabelecida o que alguns políticos designam por Doutrina Angolana de Resolução de Conflitos.

A voz sempre inspiradora do Papa Francisco voltou a ser ouvida recentemente, ao afirmar que não há democracia com fome nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade. É isso que pode trazer paz e estabilidade política e social. Algo que não é impossível se os políticos e a sociedade civil assumirem que os cidadãos têm direitos cívicos e políticos, mas também económicos e sociais e que esse conjunto de direitos deve estar sempre equilibrado.

Fernando Pacheco, 18-12-20

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