CONVERSA NA MULEMBA - CADA UM ESCOLHE SEU PÃO: IMPOSSÍVEL NÃO HÁ

1/9/2020 2:44 PM

"Parece haver dinheiro suficiente para muita coisa, mas não para se fazerem os testes (e outras acções) que permitam aos angolanos ter mais confiança na estratégia de combate à Covid."

A entrevista dada pelo Ministro da Indústria e Comércio, Vítor Fernandes, à Televisão Pública de Angola no passado mês de Julho provocou alguma polémica à volta de uma pretensa substituição do pão por mandioca ou batata-doce à mesa – de quem as têm, obviamente – do pequeno-almoço dos angolanos. A leitura de certos comentários e do artigo do colega Paulo Filipe, as conversas com alguns amigos e a posterior entrevista do Ministro da Economia e Planeamento, Sérgio Santos, à mesma TPA, suscitou em mim a ideia de expressar algumas reflexões sobre essa controvérsia.

Na primeira entrevista, em meu entender, o ministro não foi feliz no modo como expressou uma ideia que até poderia não estar errada. Mais do que condenar o consumo de pão, o ministro poderia ter dito que pode haver outras opções, entre as quais a sua substituição por outros alimentos, o que, aliás, acontece com uma grande parte da população, principalmente nas áreas rurais, onde não chega, nem nunca chegou, pão de trigo, ou ainda a produção de pão com menor percentagem de trigo, como acontece noutros países.

Aí eu estaria de acordo com ele. No meu tempo de criança em Calulo-Libolo, tinha um amigo dez anos mais velho do que eu, o Alfredo, que partilhava comigo as suas vivências no difícil quotidiano da época. Uma das que me recordo melhor era a descrição do seu matabicho, que se resumia a mbonzo (batata-doce) e chá de caxinde; Pão, só no Natal. O Alfredo era um assimilado, graças ao esforço da família para que tivesse frequentado a escola da Missão Católica. Assimilado era também o seu primo Zé Milagre, que por essa razão, pois não havia outra, foi barbaramente assassinado pelos colonialistas da terra em retaliação aos acontecimentos de 15 de Março no Norte de Angola. Com medo que lhe acontecesse o mesmo, o Alfredo refugiou-se nas matas do Kindungo e nunca mais soube dele, excepto que tinha virado “povo”, na concepção que este termo passou a ter para certas elites angolanas de hoje, isto é, passou a ser camponês com enxada e catana. Possivelmente nunca mais comeu pão de trigo.

Algumas semanas depois da entrevista originária, o Ministro da Economia e Planeamento, no mesmo programa televisivo, revelou uma suposta produção nacional de trigo quando pretendia referir-se a farinha de trigo. Como tantas vezes acontece com a transmissão deturpada de uma mensagem, o diário O País de 13-8-20 e o semanário Novo Jornal de 14-8-20, noticiaram que a produção de trigo em Angola havia aumentado 18% em 2019 atingido 333 mil toneladas, citando o ministro.

A falta de rigor na informação no nosso País sempre foi uma questão séria, que se agrava quando se trata de números, particularmente do sector da Agricultura. Essa notícia, com a chancela de um ministro, pode originar desinformação muito perniciosa e contribuir ainda mais para a descredibilização das nossas instituições. Na entrevista, o ministro, apercebendo-se do lapso, corrigiu-o e questionado pela entrevistadora, referiu que Angola não tem condições edafo-climáticas para ser auto-suficiente na produção de trigo, o que está absolutamente correcto. Porém, fê-lo com pouca ênfase, o que terá levado os jornalistas a citarem-no sem as devidas precauções para confirmação. Para se ter ideia da dimensão do erro, é bom saber que a produção de trigo em Angola estava a decrescer nos últimos anos antes da independência, tendo passado de 21.355 toneladas em 1967 para 10.145 em 1972, de acordo com dados da Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola. Para atingirmos as 333 mil toneladas expressas pelos jornais, teríamos de ter aumentado cerca de trinta vezes, o que seria um verdadeiro milagre.

O aumento de produção referido é verdadeiro para a farinha de trigo. Com efeito, para a produção de pão importamos trigo ou farinha de trigo. Se as nossas políticas fossem assertivas e o Executivo não cedesse à pressão dos lóbis de importação, desde há muito se teria acabado – ou reduzido drasticamente – com a importação de farinha de trigo, pois, como dizia o ministro, é mais correcto importar trigo em grão, por ser mais barato, e fazer o acréscimo de valor em território nacional, criar empregos e ainda aproveitar o farelo residual.            

O Humbi-Humbi, boletim informativo da ADRA, de Março/Abril de 2002, revelava, citando a prestigiada Embrapa, a aprovação de legislação prevista para esse ano no Brasil sobre a incorporação de 10% de fécula de mandioca no fabrico de pão. Tal decisão era sustentada em estudos que mostram que essa incorporação pode atingir 20 a 25%, sem alteração de sabor ou perda de valor nutritivo, dependendo esse limite das características da farinha de trigo usada e do tipo de pão pretendido, pois é o teor de glúten da farinha de trigo que confere elasticidade à massa e permite a retenção do CO2 produzido durante a fermentação, provocando o crescimento do pão durante a cozedura, e a sua maior ou menor leveza. A adopção da mistura teve grande aceitação por parte do público, principalmente pela redução do preço.

Outras experiências são conhecidas, infelizmente ignoradas pelos nossos ministérios, centros de investigação e universidades. A incorporação de 18% de fécula de mandioca é obrigatória por legislação no fabrico de pão na província moçambicana de Inhambane. Em Angola, nos anos 70 a empresa Venâncio de Guimarães passou a incorporar 10% de milho.

A questão central deve estar no custo, mas não se resume a ele. A introdução de mandioca ou milho deve representar uma redução no custo de modo a que os segmentos mais pobres da população tenham mais acesso, mas ser vista também na perspectiva da redução de importações. Importar trigo é melhor do que importar farinha de trigo, mas acarreta sempre dispêndio de divisas, cuja escassez tarda em ser devidamente assumida pelo Executivo e pelo conjunto da Nação, de modo a que as divisas sejam geridas com bom senso criterioso estabelecimento de prioridades. Uma redução dos gastos com a importação de trigo ou de outro bem substituível, pode permitir aumentar a importação de outros alimentos, medicamentos, equipamentos e demais bens essenciais à economia e à vida da população.

Claro que haverá segmentos da população interessados noutros níveis de consumo e acesso a pão com outra qualidade. Poderão fazer essas escolhas, seguramente, mas isso terá de ter o seu custo, pois elas não podem pôr em causa a sobrevivência dos pobres. Tivessem os líderes angolanos, políticos e empresariais, outra visão desde o fim da guerra, hoje teríamos os níveis de pobreza reduzidos. Se o dinheiro gasto em projectos megalómanos com tecnologia de ponta tivesse sido canalizado para outros, capazes de gerarem empregos e aumentarem o poder de compra da população em geral, com base noutro paradigma, teríamos um país diferente. Foi assim que muitos países capitalistas se desenvolveram.      

Concluindo. Se ainda não conseguimos melhorar a visão, procuremos dar pequenos passos numa boa direcção. Por exemplo, melhorando a cultura económica e o conhecimento do País por parte dos jornalistas, provocando mais debates de modo a permitir melhor desempenho dos actores públicos (incluindo governantes) e privados, produzindo pão mais barato, bem como outros alimentos, e reduzindo os gastos em divisas

Uma das mais fascinantes personagens de Jorge Amado, Quincas Berro Dágua, terá dito a sua frase derradeira, segundo quem estava a seu lado na hora da morte: cada qual cuide de seu enterro, impossível não há. Pois é, digo eu, não há impossíveis.

PS1 – Não há hino nenhum que possa ter prioridade sobre a vida de angolanos.  

PS2 – Parece haver dinheiro suficiente para muita coisa, mas não para se fazerem os testes (e outras acções) que permitam aos angolanos ter mais confiança na estratégia de combate à Covid.

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