CRISES, INVEJAS E PRECONCEITO DE COLONIZADO

28/2/2020 8:28 AM

Não me canso de citar a historiadora Maria da Conceição Neto, segundo a qual, Angola nunca, sublinho eu o nunca, foi um bom país para se viver para a maioria dos angolanos. É preciso insistir nisso, precisamente quando as crises que nos assolam permitem que se façam as mais disparatadas comparações com “outros tempos”, sem que se tenha em conta que os “bons tempos” de uns foram sempre “maus tempos” para a maioria.

São Neto é, na minha opinião, uma das mais esclarecidas intelectuais angolanas no que se refere à análise do País em quase todas as suas facetas. Custa-me dizê-lo no feminino porque nessa consideração integro todos os intelectuais. Por tal razão, é penoso constatar, que eu saiba, que nenhum Presidente da República, Ministro de Estado, Ministro do Planeamento ou da Educação, e talvez mesmo da Cultura, ou líder partidário, a chamou para opinar, com maior ou menor regularidade, sobre os problemas, as políticas ou o rumo do País. Talvez se o fizessem, assim como a outros evidentemente, nas diferentes esferas, tivéssemos hoje uma Angola diferente.

Ouvir e saber ouvir é uma prática tradicional, mais ou menos comum na diversidade do mosaico cultural angolano, que se perde quando as diferentes lideranças fazem a transição para o poder de Estado ou para outras instituições formais, e aqui não excluo nenhum tipo de instituição, com excepção das que confirmam a regra. Ao longo de quase 45 anos de independência, não me parece ter havido a preocupação de estabelecer diálogos alargados ou consensos para a solução das crises que vivemos. O fim da guerra no início dos anos 90 foi apenas uma negociação entre as duas partes em conflito, como haviam sido as negociações para a independência.

Hoje existem mecanismos de participação da sociedade na discussão da polis que poderiam ser adoptados para, com base no nosso substrato cultural, se discutirem os complexos problemas da Nação. Os diferentes poderes não os conhecem ou ignoram-nos. Mesmo para tratamento de aspectos mais simples, como a discussão sobre políticas públicas ou ante projectos de leis, são usados mecanismos de auscultação ultrapassados ou viciados. Participação é um processo com várias etapas, desde a simples informação à co-gestão ou mesmo autogestão. Em Angola fica-se, quando muito pela auscultação, na maior parte dos casos muito viciada.

O Presidente João Lourenço tem dado alguns passos no bom caminho, mas são claramente insuficientes. Estamos a viver uma crise multidimensional e não me parece que seja possível vencê-la sem um diálogo sem filtros. Os desafios têm cariz económico, financeiro, social, institucional, cultural, ambiental, religioso, político, de valores se quisermos, e torna-se difícil encontrar um domínio da vida nacional onde a crise não se faça sentir. Uma só pessoa não pode enfrentar todos eles, principalmente se não dispuser de um aparelho auxiliar muito dotado ou uma espécie de estado-maior extremamente competente. A simples constatação de falhas nas nomeações de governantes ou na aprovação de alguma legislação ou ainda no modo como (não) se comunica, do conhecimento geral, mostra que o Presidente não tem as “massuícas” necessárias que permitam ferver a água.

Estas falhas estão a minar a imagem do Presidente, numa altura em que ela deve ser preservada ao custo que for necessário para condução do processo de transição em curso. É verdade que se procura transmitir a ideia de que há uma preocupação legítima de separação de poderes, mas enquanto esta Constituição estiver em vigor, com os poderes que dá a uma só pessoa, não se constrói a confiança necessária para o enfrentamento dos desafios. O tratamento das eleições autárquicas é um exemplo claro da ambivalência que vai prevalecendo. Já se percebeu que não haverá eleições em 2020, mas mantém-se um manto de silêncio sobre o assunto. Quem, no final das contas, ficará com o ónus da questão? Dir-se-á que o MPLA, na sua esperteza habitual, encontrará uma solução, talvez até remetendo uma responsabilidade ainda não vislumbrada para a oposição. Mas os riscos serão enormes, até porque o MPLA de hoje não tem, nem de longe, a competência de outrora, incluindo para esse tipo de esperteza. Algo semelhante se passará com a Comissão Nacional Eleitoral. Quem acredita que o processo do concurso para Presidente da dita tenha decorrido com lisura? Porque não houve o bom senso de se encontrar uma figura menos polémica? Não se percebe que, desde já, os próximos actos eleitorais estarão inquinados? Não se percebe que com a contestação da oposição e de segmentos significativos da sociedade civil o ambiente de negócios não conhecerá a melhoria de que tanto se necessita?

Infelizmente os apoios de que a sociedade precisa têm faltado da parte dos que poderiam considera as reservas morais da Nação. É certo que tais reservas estão esvaziadas ou fragilizadas. Os anos de desvario esvaziaram o erário público e esvaziaram também demasiadas consciências. São poucas as vozes que hoje têm autoridade moral para apontarem caminhos. Não ouvir das igrejas mais respeitadas críticas mais severas à ostentação e ao luxo que, de modo despudorado, exibem alguns poucos que, é sabido, não conseguem justificar a origem dos gastos em extravagâncias, perante o sofrimento dorido de milhões de angolanos que não têm alimentos para sobreviver nem tecto para se abrigarem, verificar que autoridades eclesiásticas permitem e dão a cara nessas orgias, é muito mau sinal. Como é mau sinal que não apareçam mais vozes de outros sectores da sociedade a criticarem publicamente – porque o fazem nos óbitos e nos almoços de sábado – estas manifestações. Como não o fizeram durante os anos de desvario. Limitam-se, em muitos casos, a mostrarem que são os “novos descontentes” que responsabilizam uma só pessoa pelas várias crises de que padecemos.

Mas, afinal, o que representa esta overdose de ostentação? Seguindo o raciocínio de Mia Couto, Angola produziu “ricos” do modo que se sabe sem produzir riqueza. Nesta situação as manifestações de novo-riquismo são inevitáveis. Mas devemos atentar também aos aspectos culturais. Aprendi com um dos meus mestres em matéria de desenvolvimento que nas sociedades bantu existe um “poder nivelador” que dificulta a mobilidade social ascendente. Em Malanje um agricultor destacado recusou um prémio que eu, na qualidade de Delegado do Ministério da Agricultura, quis atribuir-lhe na altura com medo das invejas. Entretanto, um amigo que cresceu na RDC afirma que a ostentação de Mobutu era uma manifestação de poder. Quando se dá o clique para a “sociedade de Estado”, o medo das invejas dá lugar ao preconceito de colonizado: vou fazer assim para mostrar aos antigos (e novos) colonos que tenho poder. Este tipo de manifestação é recente em Angola. Trata-se de mais sinal da crise de valores, que, como as outras, tem de ser enfrentada de modo holístico, e não com campanhas dirigidas por quem não tem valor, mas apenas “valores”, como agora se diz quando se quer referir a dinheiro.

Fernando Pacheco, 20-2-2020

Membro do OPSA

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