Tudo parece conspirar contra o meio rural

9/7/2019 1:38 PM

Cacula (Huíla) enfrenta grandes constrangimentos

 

Quando chegamos à aldeia Kavissi 2, comuna de Chicuaqueia, município de Cacula, província da Huíla, estavam quatro cadeiras azuis de plástico dispostas em círculo debaixo de uma árvore.Depois trouxeram mais, onde falámos com Adão Kassoma e Dionísia Ngueve, sobre os sonhos da Associação Tulivunguende, criada em 2011. Desde essa altura que investiram em meios de transporte, numa moageira e num centro de transformação que chegou a fornecer a merenda escolar. Está tudo parado.

No mesmo dia em que João Lourenço inaugurava e visitava diversas estruturas no Lubango,  Kavissi 2 parecia noutra frequência. Longe do rebuliço da política, a vida passeava normalmente nos sulcos de uma picada mal-cuidada,rebentada pelas chuvas e pela falta de manutenção. Naquela manhã, o frio do Cacimbo tinha levantado o pé e o sol rasgava um céu azul imaculado. Ao visitara moageira, construída pela associação, em parceria com a equipa local da Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente (ADRA), no âmbito do projecto Kumosi (financiado pela União Europeia e pela organização alemã Pão Para o Mundo),Dionísia Ngueve aponta para a máquina que deveria pisar o milho para transformá-lo em fuba. Como é a base alimentar das famílias da região, a fuba de milho pode ajudar a aumentar os rendimentos no meio rural, devido à elevada procura e consumo generalizado. “Neste momento, é necessário substituir algumas peças que estão com problemas. A máquina deixou de trabalhar e para repará-la precisamos de cerca de 50 mil kwanzas. Necessitamos de apoio para repará-las”,disse Dionísia Ngueve, que afirma ter 40 anos. Mas parece ter muitos mais.Também fora de linha está o centro de transformação, construído em 2013, que é capaz de transformar a batata-doce alaranjada e a abóbora em bolos, bolinhos e sumos naturais e ainda fabricar pão-de-ouro (produzido com batata-doce). Ou seja, duas das grandes conquistas da Associação Tulivunguende, que começou com 80 membros e agora conta com 138, sofrem com problemas técnicos, no caso da moageira, e com a falta de clientes, no caso do centro de transformação. Para agravar a situação, a caleluia da associação também está avariada. Nas aldeias vizinhas há outras moageiras operacionais. O centro de transformação, que também foi construído nos mesmos moldes da moageira, começou por servir uma função social, prevista nos estatutos da Associação Tulivunguende: fornecer a merenda escolar às crianças da aldeia Kavissi 2.

“Naquela altura, entre 2013 e 2014, as crianças estavam a passar fome devido à seca. As crianças estavam a fugir da escola e decidimos fornecer a merenda escolar como forma de mitigar os problemas e motivar a sua presença nas aulas” explicou Adão Kassoma, 50 anos, fiscal da Associação Tulivunguende.

A iniciativa transformou-se numa oportunidade económica. Ficou claro que a própria comunidade pode ser prestadora de serviços, nomeadamente, ao nível da merenda escolar, que é um projecto com inúmeras deficiências: atinge apenas uma pequena percentagem das escolas do país, privilegia a relação com grandes fornecedores (que não estão presentes em determinadas zonas, dificultando e encarecendo a logística de entrega dos alimentos) e fornece um conjunto de produtos sem relevância nutricional. Especialmente no meio rural, até pelas suas características ao nível da produção de alimentos (as escolas estão nas imediações das lavras), a solução pode estar à porta de casa. Os agricultores estão descapitalizados, por falta de financiamento, apoio técnico, pelas dificuldades de escoamento dos produtos e pela inexistência de uma rede comercial que una o campo e a cidade.Caso fornecessem a merenda escolar, estaria resolvida parte dos problemas de escoamento e de rendimento, já que as administrações municipais pagariam pela prestação de serviços.

Seria uma forma de promover as iniciativas económicas locais. A picada de acesso à aldeia acaba por ser a única ligação ao mercado. É por ali que entram as carrinhas que compram a produção camponesa para revender no Lubango ou em Benguela.

É verdade que, no presente ano lectivo, a associação não está a fornecer a merenda escolar. Quer dizer, de vez em quando ainda prestamos este serviço, só que continuamos à espera de uma resposta da administração. Quando recebemos a visita do ex-vice-governador da Huíla, Sérgio Cunha Velho, prometeu que iríamos ser incluídos na lista de fornecedores da merenda escolar. Mas até agora nada foi concretizado”, explicou Adão Kassoma.

Os bolos e bolinhos de batata-doce e abóbora já se transformaram numa marca da aldeia. Até João Lourenço recebeu um exemplar de oferta durante os festejos do 11 de Novembro de 2017, que aconteceram no município huilano da Matala. Inclusivamente, a receita tem sido exportada para o mercado da grande cidade, por via das participações na Expo Huíla (um bolo do tamanho de uma forma normal é vendido a 2.000 kwanzas) e do Boca-a-Boca. A fama é tanta, que membros de outras comunidades da região deslocam-se a Kavissi 2, para conhecer os truques necessários à sua confecção. O centro de transformação tornou-se numa atracção da vida rural nas imediações de Cacula.

Marcas da guerra

O preço de um bolo inteiro é o equivalente a uma deslocação à cidade, seja Benguela ou Lubango. Ir e voltar a Kavissi 2 são 4000 kwanzas por pessoa, um valor significativo para uma família do meio rural.A falta de uma rede provincial de transportes públicos é um sério entrave ao desenvolvimento rural.

Adão Kassoma tem 5 filhos e é natural da comuna da Chikuma, município da Ganda, província de Benguela. Dionísia Ngueve tem 7 filhos(um já é falecido, assim como o marido, que morreu em 2002) e descende de uma família do Huambo. Algumas famílias, como é o caso de Adão Kassoma, foram realocadas pelo Governo em Cacula, devido ao impacto da guerra civil nas suas zonas de origem. Na aldeia Kavissi 2, comuna de Chicuaqueia, município de Cacula, a vida é sobretudo rural e os habitantes dedicam-se à produção de cereais (com forte predomínio do milho, massango e massambala), hortícolas(alho, abóbora, batata-rena, batata-doce de polpa alaranjada, gengibre,jinguba, entre outros), com base no esquema tradicional umbundu de rotatividadedas terras, em função da época do ano. Quase todas as famílias criam cabritos,bois e galinhas. A terra é fértil, apesar de não ser uma região abundante em recursos hídricos. A tracção animal é usada de forma abrangente e, no total,entre a lavra da associação e as lavras particulares, estes camponeses possuem vários hectares de terra. Só nas terras baixas (onaka), indicadas para o cultivo na época seca, Adão Kassoma possui 2,5 hectares, cerca de 2,5 campos de futebol de 11. “Cheguei ao Kavissi 2 em 2000. Mas, depois de 2002, algumas famílias começaram a voltar para as suas aldeias. Nós gostamos deste lugar e decidimos ficar aqui mesmo. Vivo com a esposa e os filhos vão à escola”, contou Adão Kassoma, num Português satisfatório, mas sempre com a memória e a mente a debitar em Umbundu.

No meio rural, a língua portuguesa é uma espécie de ferramenta estranha, utilizada para comunicar com as pessoas de fora da comunidade.Domina-se apenas o essencial. E mesmo assim, a sua utilização é colocada em segundo plano, devido à necessidade e vontade de afirmar o seu imaginário pessoal. Nem sempre o sistema de ensino e as instituições públicas estão preparadas para esta realidade. Dionísia Ngueve não perde tempo no Português e aproveita a ocasião para fazer um relato na forma mais confortável.

Todos os meus filhos vivem fora da aldeia e mesmo assim têm muitas dificuldades em frequentar a escola”, começa por dizer. “Neste momento, a minha filha não tem bata, não tem livros e neste ano também não teremos o milho - assim vamos fazer como?”, questiona Dionísia Ngueve, antes de recordar que o furo de água está distante e que o centro médico comunal está a cerca de 30 quilómetros e 500 kwanzas de motorizada, por uma picada estreita e mal-amanhada.

 

O mesmo cenário, na Vihamba

Na Vihamba, aldeia situada na comuna sede de Cacula, o cenário é similar ao Kavissi 2. Com uma diferença: a estrada nacional que liga Cacula ao Lubango (cerca de 100 quilómetros) passa na porta de casa. Mesmo assim, o centro de transformação, que, para além dos sumos,bolos e bolinhos de batata doce e abóbora, também servia refeições (para aproveitar a proximidade com o tráfego inter-provincial e com a escola) estava a ser pintado pelos técnicos da ADRA. A imagem sempre tem alguma influência na percepção das pessoas.

“Como não choveu o suficiente nesta zona da província -ao contrário da região de Caconda-Caluquembe, onde a estação das chuvas foi normal - a produção de milho será fraca. O que ficou na terra está mais para palha” frisa Anivaldo Pena, coordenador da intervenção da ADRA.

A Cooperativada Vihamba, com mais de 100 membros, existe há cerca de 10 anos e, para além do centro de transformação, possui um armazém para guardar o milho, massambala e feijão. Tudo construído pelos membros, em parceria com a ADRA.

Avelina Kaita,45 anos, falava ao telefone em Umbundu, antes de voltar ao Português. Já viveu no Lubango (onde vendia na praça), devido à guerra, mas logo em 2003 preferiu regressar.

“Aqui tenho as minhas lavras e posso gerir melhor a minha vida. Na cidade, é tudo mais caro”, recordou.

Os membros da Cooperativa da Vihamba enfrentam os mesmos constrangimentos de outras zonas rurais: falta de material de trabalho, de acesso ao mercado, de sementes, de moto-bombas para melhor gerir a água disponível, de vias de acesso. Isto já para não falar no financiamento, que para os pequenos produtores é nada mais do que uma miragem.“O meu sonho é aumentar a produção de hortícolas”, disse José Manuel,coordenador do Conselho Fiscal da cooperativa, que tem 14 filhos - 2 vivem no Lubango, 3 estão em Benguela e os restantes estão mesmo na Vihamba.     José Manuel aproveita a proximidade da estrada para vender alguns dos seus produtos. No resto do tempo, vai sonhando com os objectivos de gente comum: melhorar a produção agrícola familiar e encaminhar os filhos para a escola.

“Assistência sanitária é irrelevante” Anivaldo Pena, 30 anos, coordenador da intervenção da ADRA (que trabalha em 22 aldeias e 24 associações só no município de Cacula) e médico-veterinário de formação,recorda que a assistência técnica e sanitária é quase irrelevante. “O Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA) em Cacula tem apenas quatro técnicos. Quase sem meios para trabalhar. E os serviços veterinários desenvolvem algumas iniciativas, mas também com pouca abrangência”, explica o técnico de desenvolvimento comunitário. A intervenção da ADRA acaba por ser um exemplo de extensão rural: os projectos são desenhados com vertentes específicas - no caso do Kumosi, o foco está no reforço das capacidades das associações e da cadeia de valor - mas sem deixar cair a vertente cultural e familiar. Em parceria coma administração e dentro do projecto Kumosi, foi possível tratar dos documentos pessoais (cédulas e bilhetes de identidade) de mais de 200 pessoas daquela região. Tudo o que possa melhorar a vida das famílias está no âmbito da extensão rural.

*Texto retirado do Jornal de Angola, 08 de Junho de 2019, páginas 04 e 05.

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